doce vingança
cruzou-se com schopenhauer na rua por acaso, num dia de sol.
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o filósofo viu através do seu balanço e do seu mp3 o sítio onde costumava estar o seu coração. ela era ainda nova. e certa. e já tão doída, pensou. andaram juntos um bocado do caminho dela e schopenhauer bebeu do cálice dela num semáforo. ela tinha prometido chorar apenas no silêncio branco de capelas, mas não se conteve. ele não soube ser ombro, era frio e anguloso, mas deu-lhe um frasquinho de comprimidos. o rótulo dizia contemplação estética. e numa vertigem explicou-lhe: ela queria-o (a ele não ao filósofo, claro está). isso era vontade. vontade era o seu corpo, era ela. era ele corpo também. o modo como ela via o mundo - dizia - era interessado, centrado nela, o seu corpo vontade era o centro, o referencial. o modo como ela o via era interessado, era vontade, era desejo, e isso ela sabia oh se sabia. daí a dor, toda a dor, e a que viria ainda. mas - dizia ainda com ar de filósofo preocupado e sem certeza de estar a oferecer um presente e não um veneno - havia uma maneira. porque pode haver e há um outro modo de ver o mundo, um ponto de vista diferente, uma representação desinteressada, objectiva. explicou-lhe como: a contemplação estética. disse-lhe que havia ainda uma outra alternativa, a metafísica, mas advertiu-a que essa era ainda menos eficaz e mais exigente e trabalhosa. adivinhava-a artista. na contemplação estética supera-se a vontade, dizia. ela sorria. mas schopenhauer era um homem honrado e não lhe largou a mão: pôs um ar ainda mais grave e falou-lhe das perdas. ele perder-se-ia para sempre como ele, seria uma ideia de homem, um universal, uma certa forma de beleza. e ela teria também de renunciar a si própria e passar a existir somente como sujeito puro de conhecimento. não mais gelados no santini ou primaveras ou moinhos, profissões, imperiais ou esplanadas. ela seria também uma abstracção. mas sem vontade. des-individuada. sem sofrer. na eterna contemplação estética. bastava para isso torná-lo belo, melhor, no belo.
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assinaria ela por eles os dois este pacto com o destino? ser ela eternamente sujeito puro de conhecimento em contemplação, e ser ele para sempre uma obra de arte?
foi para casa com o frasquinho de comprimidos na mão, a cantar baixinho as músicas que o seu mp3 lhe segredava (saltando sempre as do chet baker). não sabemos como decidiu.
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sabemos isso sim, que ela não se toma como artista, e que portanto, até isso lhe doía.
não sabemos rigorosamente mais nada.
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